Eu quero um sol mais sol que o sol

Estabelecimento Prisional de Tires, 28.11.2025 | Projeto da artista Fernanda Fragateiro, com colaboração de Luiza Teixeira de Freitas

 

694, 676, 632, 602, 686, 654, 672, 680.

Contei, a cada uma das oito vezes que atravessei o portão principal da prisão, os meus passos até chegar à Casa das Mães, no final da avenida que corta o amplo terreno como uma espinha dorsal.

Contei numa certa ideologia poética de que são esses passos que separam aquelas mulheres da liberdade. São esses passos que separam a minha condição da delas, a minha vida da delas, a minha liberdade da delas. Contei por que o exercício de estar dentro de uma prisão é, antes de tudo, um exercício de tempo, de suspensão e de alargamento, de uma temporalidade que se dobra sobre si própria. Uma hora que pode ter o peso de três, ou um instante breve que fica mesmo marcado para sempre.

Nunca em nenhum outro lugar da vida havia sentido o tempo tão enevoado, tão elástico. Um tempo que só volta no regresso da tal avenida, quando voltamos a ter os nossos telefones, as nossas vidas, horas depois, como se o mundo lá fora existisse apenas em diferido.

As visitas começaram com nenhuma resistência, mas sempre com alguma desconfiança, uma reserva natural de quem aprendeu a proteger-se do que vem de fora. Aos poucos, com gestos, olhares, tímidos sorrisos e claro com as mãos que juntas trabalharam, fomos construindo uma confiança silenciosa, quase doméstica. Fizemos o nosso pequeno núcleo de trabalho no primeiro dia, e a cada encontro ele mudava, porque na prisão o imprevisto é o quotidiano: uma consulta médica, uma audiência, uma indisposição, uma visita inesperada. Eram as mesmas, mas rodava, e o grupo mudava, ainda assim, estavam sempre ali – presentes, inteiras, disponíveis dentro do possível.

O projeto nasceu de um convite a Fernanda Fragateiro, que por sua vez me chamou para acompanhá-la. Inspirada nos libroletto de Bruno Munari, pequenas publicações-objeto que unem simplicidade, forma e imaginação, a proposta era na Casa das Mães pensar um projeto geométrico e cromático, que depois transformar-se-iam em almofadas, produzidas em parceria com o departamento de costura do Estabelecimento Prisional, peças geométricas que pudessem ligar-se umas às outras, criando uma composição comum, mas mantendo a singularidade de cada uma. A metáfora era clara: juntas, mas distintas, unas.

O processo foi um sucesso, não apenas pelo resultado, mas pela energia que se instalou. Cada cor escolhida, cada costura traçada, cada linha que se unia a outra tornava-se parte de uma coreografia entre mãos e ideias. Era trabalho e era arte, mas também era conversa, riso, pausa, memória, colaboração. O resultado, quando o começamos a ver criar forma, era mesmo bonito.

Plantamos uma semente, que rapidamente cresceu para além do que tínhamos imaginado. Algumas mulheres viram na Fernanda, na sua presença, uma possibilidade de transformação. Sem lhes pedirmos, começaram a pensar mais longe: falaram da ala de dezesseis celas, onde dormem, onde vivem, e das portas grandes e frias, de betão, descansadas há anos na sua fealdade. Queriam mudá-las, fazer delas outra coisa. Fernanda, não hesitou, projetou na ala um arco-íris de portas, um gesto simbólico, quase

impossível, e as mulheres, mãos à obra. Em duas semanas, lixaram, pintaram, transformaram o que era peso, em passagem, o que era clausura, em cor.

Em paralelo, levámos palavras.
Textos, poemas, fragmentos, maioritariamente escritos por mulheres. Lemos juntas. Em voz alta, em silêncio, em coro. As palavras atravessaram o espaço como um vento novo. Houve quem se emocionasse, quem risse, quem se calasse, houve até revolta e desses momentos nasceram escolhas, cada porta ganhou uma palavra, cada cela um nome, uma respiração nova – sonho, abraço, saudade, dejávu…

Pelo prédio da Casa das Mães, espalhámos poesia e cor: blocos monocromos pintados nas paredes pela mão da Fernanda, pequenas interrupções cromáticas que eram como janelas abertas dentro do cinzento. O projeto uniu-as. Trabalharam juntas, cuidaram-se. E nesse, entretanto, esse tempo entre tempos, cuidaram também dos filhos umas das outras, das dores umas das outras, dos silêncios umas das outras.

Quando já tudo parecia completo, veio o gesto inesperado: decidiram reorganizar a abandonada biblioteca da ala, sem que ninguém sugerisse, começaram a limpar, arrumar, classificar, abrir espaço para o novo. Havia ali uma vontade de recomeço que não cabia nos limites das paredes.

Foi comovente ver como, dentro de um espaço construído para conter, nasceu um lugar de expansão. Como, dentro do confinamento, o gesto artístico se tornou um gesto de libertação.
Ali, o tempo, esse tempo suspenso, transformou-se em matéria viva, em ritmo, em respiro.

694 passos depois, entendi que há distâncias que não se medem em metros, mas em encontros. E que há liberdades que, mesmo entre muros, encontram sempre uma forma de se manifestar.

Texto de Luiza Teixeira de Freitas. No contexto do projeto: Eu quero um sol mais sol que o sol, de Fernanda Fragateiro